Todas essas histórias me fazem quem eu sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha experiência e não olhar para muitas outras histórias que me formaram.

Apesar de termos aumentado muito o número de famílias com esse tipo de filiação, o tema da adoção ainda é bastante controverso no imaginário social. Muitos são os mitos, preconceitos e fantasias criados em nossa cultura sobre crianças e adolescentes que aguardam uma família. É recorrente pensar que a criança adotada tem um quadro psíquico especial, como ser portadora de traumas irreparáveis ligados ao abandono, à negligência e/ou à violência (CORDEIRO, 2023). Além disso, nossa sociedade “civilizada” (diferentemente de muitos povos originários) tem construído suas bases na família nuclear, em que a criança é amparada apenas por um pai e uma mãe vinculados ao sangue, sem o apoio de uma comunidade de pais, mães ou parentes que são corresponsáveis por todo o acolhimento e desenvolvimento dela até a vida adulta. Como os laços de sangue são muito valorizados, e a transmissão de herança de pai para filho é fundamento de nossa estrutura econômica, cria-se a ideia de que ter um filho biológico é a forma natural de filiação. Além disso, a noção de que nossa personalidade tem forte carga genética também é bastante presente, gerando temor de que a criança adotada repita comportamentos negativos advindos de seus pais biológicos.

Para que possamos ampliar nossa visão, é importante questionarmos esses mitos e nossas bases culturais, já que, de fato, a adoção é uma oportunidade para pais e filhos se encontrarem e compartilharem uma vida afetiva juntos.

Em primeiro lugar, quando pais e filhos iniciam uma relação, cada um tem uma história pregressa que se entrelaçará. E o desejo de conhecer a própria história não é específico aos filhos adotivos, ainda mais nos tempos de hoje, em que o tema do resgate da ancestralidade tem vindo à tona, principalmente entre pessoas negras e indígenas, pelo fato de muito de suas raízes ter sido apagado no processo de colonização (língua de origem, religião, costumes e tradições). A família é nossa matriz de identidade, e com ela aprendemos os costumes de nossa cultura pregressa. Quando uma criança se insere em uma nova família, ela se desenvolverá aprendendo sua nova cultura, mas também precisará ser respeitada e incentivada a vivenciar e expressar características de sua origem ancestral, principalmente em casos de adoção inter-racial (LEVINSON, 2013). 

Quando falamos sobre traumas específicos que uma criança adotiva carrega, também é preciso compreender que todos carregamos traumas em nossa história de vida e que cada criança adotiva tem uma vivência particular. Por exemplo, não é regra que a experiência em um abrigo seja negativa e sem trocas de afeto, e, mesmo que a criança tenha traumas relacionados a abandono, violência ou negligência, quando a família adotiva oferece o amparo adequado, pautado na compreensão, no amor e no acolhimento, pode ser que as vivências do passado nem tragam grande repercussão em seu desenvolvimento futuro, pois a experiência emocional presente é muito maior e mais significativa (CORDEIRO, 2023). 

A psicoterapia para filhos adotivos oferece espaço para a escuta e o acolhimento das várias histórias por que o indivíduo é formado. Como disse a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre a sua experiência nos Estados Unidos sendo uma mulher vinda de um continente visto pelo senso comum como um lugar de pobreza e poucos recursos, ela havia vivido em seu país uma vida cheia de experiências diversas, mas os estadunidenses já a viam de antemão como uma pessoa vitimizada. Num trecho de seu livro, ela reflete: “Todas essas histórias me fazem quem eu sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha experiência e não olhar para muitas outras histórias que me formaram”. (ADICHIE, 2019, p. 26)

Um filho adotivo também é formado por histórias muito diversas, e o espaço terapêutico pode ajudá-lo a dar voz a suas angústias, reconhecer suas origens e lidar com possíveis conflitos em sua nova história, cheia de nuances, com seus novos pais. Muitas vezes, o filho adotivo é fisicamente muito diferente de seus pais e familiares, e não é incomum estar sujeito a mensagens discriminatórias veladas ou explícitas vindas de seu ambiente social. Assim, a psicoterapia pode ajudá-lo a identificar, se fortalecer e responder de forma mais potente e assertiva diante dessas situações.

Já para pais via adoção, a psicoterapia pode ajudar a dar sustentação e acolhimento no desenvolvimento do seu papel de pais, dirimir possíveis mitos e fantasias advindos do senso comum e elaborar angústias, temores e questionamentos para estarem mais abertos para acolher a criança ou o adolescente em suas necessidades, criando uma relação saudável e pautada na troca de amor e compreensão.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CORDEIRO, L. S. C. História anterior à adoção: representações sociais construídas por pretendentes à adoção. Dissertação de mestrado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. Irati, 2023.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019.

LEVINSON, G. K. Adoção inter-racial na clínica psicanalítica: a construção de um sentimento de identidade própria. Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 47, n. 2,166-175, 2013.

VIGEVANI, D. Histórias cruzadas: O trabalho com histórias de vida junto a famílias com filhos adotivos. Disponível em: https://encurtador.com.br/grVWB
Acesso em: 27 fev. 2025.

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